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Baixa eficácia da política fiscal nos EUA
Marcelo de Paiva Abreu 1
Guilherme Lichand 2
Já se pode falar em relativo consenso dos economistas acerca do que explica o comportamento das famílias na economia dos EUA nos anos que precederam a crise de 2008. A bolha financeira impulsionou o aumento da riqueza, o que reduziu drasticamente a necessidade de poupança para atingir o patrimônio desejado, levando os consumidores a despouparem. Essa história, no entanto, não parece totalmente consistente. Embora seja um fato em geral negligenciado, o mesmo cenário – bolha financeira e subseqüente incremento substancial da riqueza – fez com que as famílias se comportassem de maneira completamente oposta nos anos que precederam 1929. Há importantes diferenças quanto ao que fundamentou a dinâmica de poupança das famílias nos dois episódios, com implicações para a potência das políticas de superação da crise.
Se no contexto atual as famílias estão substancialmente endividadas, isso não era verdade em 1929. Essa observação pode parecer surpreendente diante das evidências de expansão do crédito nos anos 1920, sobretudo em resposta à produção em massa de automóveis e subseqüente impulso ao mercado imobiliário. Estudos econométricos utilizando dados de oferta de moeda sugerem que o boom de crédito não foi um fenômeno específico aos EUA no período. A evidência de que o crédito expandiu-se, combinada à observação de que o consumo contraiu-se enormemente nos anos mais críticos da depressão, tornam sugestiva a teoria de que consumidores endividados passaram a poupar para pagar suas dívidas, agravando a depressão, numa espiral de deflação e endividamento, como sugeriu Irving Fischer em 1933. Mais do que isso, a queda no valor de seus portfólios teria limitado sua capacidade de acessar o mercado de crédito, como comenta Bernanke em seu livro “Essays on the Great Depression” (Princeton University Press, 2000).
Essa explicação, contudo, não é sustentada pelos dados para o período 1929-1933: a participação da poupança das famílias norte-americanas na renda vinha numa trajetória ascendente antes da crise, passando de uma média de 6,6% do PNB em 1920-24 para 7,8% em 1925-1929, revertendo-se apenas no período de contração mais acentuada, alcançando 1,2% em média entre 1930 e 1933.
O que concilia essa evidência com o que se sabe sobre a expansão do crédito na década de 20 é que quem estava significativamente endividado no período eram as firmas, e não as famílias. A dívida corporativa e as hipotecas no balanço das firmas aumentaram em termos reais a taxas superiores a 10% ao ano entre 1926 e 1929. Já a crise atual foi precedida por substancial declínio da participação da poupança das famílias norte-americanas na renda – passando de uma média de 7,7% do PIB em 1985-1989 para 6,5%, 3,8% e 2,1% nos qüinqüênios seguintes, até alcançar média de 0,5% de 2005 a abril de 2008. Essa tendência foi revertida quando a situação começou a agravar-se, alcançando média de 2,8% do PIB entre maio de 2008 e fevereiro de 2009.
Essa enorme despoupança das famílias nos anos recentes refletiu a necessidade de contornar limites à expansão da demanda agregada face ao contínuo crescimento da produtividade não acompanhado por elevação do salário real. O momento é especialmente oportuno para explorar o papel da desigualdade. Emmanuel Saez, economista da Universidade de Berkeley, acaba de receber a medalha Clark, principal distinção concedida a economistas de menos de 40 anos, por seu trabalho sobre desigualdade e taxação. Em artigo de 2008, em que analisa a participação na renda dos 10% mais ricos ao longo do século passado, destaca que, no período que antecede as duas crises, a participação na renda do primeiro decil atingiu praticamente 50% nos EUA. O índice de Gini, que havia atingido 0,45 em 1929, esteve sempre acima de 0,46 a partir de 2000 e alcançou o pico histórico de 0,47 em 2006, em contraste com a mínima histórica de 0,39 em 1968.
A sofisticada tecnologia de concessão de crédito para financiar a expansão do consumo a famílias que tinham baixíssima probabilidade de repagamento não estava disponível nos anos 1920. O resultado é que o boom de crédito de então focalizou as firmas, enquanto o de agora se voltou para as famílias. Mas famílias endividadas impõem desafios mais significativos à recuperação: o declínio da propensão marginal a consumir em virtude da necessidade de repagamento das dívidas implica redução do multiplicador da política fiscal. A teoria de dívida-deflação de Fischer pode ser aplicada às empresas endividadas: a queda no valor de seus ativos gera necessidade de desalavancagem e, se o fenômeno é generalizado, o excesso de oferta derruba os preços ainda mais; o fato de que esses ativos são progressivamente incorporados ao balanço dos bancos induz a recorrência de crises financeiras. A ligação com o prolongamento do período recessivo é, contudo, bastante menos direta.
Artigos recentes apontam que se de um lado o impacto sobre produto, emprego e preço dos ativos é hoje tão ou mais grave que nos primeiros anos da Grande Depressão, de outro as respostas de política são notadamente mais fortes. Não obstante, se a política fiscal mostrou-se potente nos anos 1930 para recolocar a economia em uma trajetória de recuperação, o espaço para que políticas dessa natureza obtenham efeitos similares no contexto atual parece bastante mais limitado.
1 Marcelo de Paiva Abreu, PhD em Economia pela Universidade de Cambridge, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio.
2 Guilherme Lichand, bacharel em Economia pela FGV-EESP, é mestrando em Economia pela PUC-Rio.
5 comentários:
Oi, Guilherme Lichand.
Primeiramente parabéns pelo artigo publicado hoje no Estado de S. Paulo, junto, com o prof. Marcelo de Paiva Abreu.
Sei o quanto é importante, para nós jovens economista expormos nossa opiniões.
Bem, feito os merecidos elogios, tenho alguns apontamentos a serem feitos.
No artigo em questão você faz referência a um dicotomia ( 1929-33 e 2007 -??, ambos classificados como ciclo Fischer, sendo o último diferente da estrutura proposta por Fischer [1933].
Se esta interpretação estiver correta, quais seriam as políticas eficazes para quebrar este ciclo vicioso "ala" Fischer?, pois, os pacotes fiscais, até então lançados, não priorizam as famílias mas sim a firmas. Se tratarmos em termos mais amplos "demanda agregada" acharemos as famílias (consumo)como um dos diversos componentes do agregado, portanto, a "idéia" de baixa eficácia das políticas fiscais e monetárias seria comprovada.
Tudo isso faz sentido, a não ser por uma coisa, os pacotes de tributários (corte e subsídios) ganhariam apelo político, pois, elevam a renda disponível das familias de imediato.
Mas não observamos isso quando nos deparamos com a realidade, pelo contrário, houve um pressão políticas forte (nos E.U.A)para que o pacote não fosse só composto de isenções fiscais mais um apanhado de todas as políticas priorizando até a que você considera ineficaz (fiscal e monetária).
O que estou querendo dizer com tudo isso, é que as medidas foram importantes em conjunto como um paliativo para retomar a confiança, perdida pela crise, se isso é verdade, existe um equivoco em questionar a qualidade da políticas , pois, as forças políticas e sociais forçaria a estrutura economia a tomar esta medidas mesmo elas sendo a priori ineficientes.
E mais uma coisa,poderia me informar quais são os artigo recentes que falam desta diferença na reestrutura (firmas - famílias)?
Muito Obrigado,
Thiago Rocha
Thiago,
obrigado pelos comentários.
Primeiro, sobre Fischer, é interessante observar que a formulação original do problema conforme levantado por ele foi largamente ignorada pela Academia no período, porque se a deflação implica perdas reais para os devedores, implica também ganhos reais para os credores, configurando mera transferência de renda que, portanto, não deveria ter efeitos reais sobre a economia. Interpretações posteriores, como a de Bernanke a que fazemos referência no artigo, reposicionam os efeitos deletérios da deflação sobre o portfólio de firmas ou famílias num contexto de teoria da agência - os efeitos reais vêm da restrição ao crédito acentuada pela piora da qualidade de seus balanços patrimoniais.
Tanto a crise de 1929 quanto a atual podem ser compreendidas nesses termos, embora a anterior em relação às firmas, e atual (também) em relação às famílias.
Os pacotes fiscais de recuperação não focalizaram apenas firmas: o Governo buscou atuar de modo a baixar as taxas de financiamento e refinanciamento no mercado imobiliário, em busca de evitar maiores defaults e de impulsionar uma retomada dos preços dos imóveis.
Com relação ao esforço para recuperar os bancos, ao meu ver até agora foram completamente mal-sucedidos. Em linha do que argumentou a Monica Baumgarten em seminário recente aqui na PUC, entendo que as instituições financeiras norte-americanas estão tão endividadas quanto no início da crise, apenas mais líquidas - o que ajuda pouco dado que o problema é de solvência.
Mais que isso, conforme artigo recente de André Lara Resende, recuperação é impossível sem equacionar o problema do endividamento de firmas e famílias.
Para concluir, o ponto de que famílias endividadas geram desafios mais complexos que firmas endividadas para as políticas de recuperação é interpretação nossa a partir do que está condensado no livro de Bernanke cuja referência está no próprio artigo. Se você quiser dar uma olhada mais a fundo no perfil de poupança das famílias nos anos 20 e 30, um ótimo artigo é Warburton (1935) "The Trend of Savings, 1900-1929".
Abs
Caro Guilherme,
Eu acho que o argumento que a recessao atual eh pior que a Grande Depressao eh incorreto.
O mundo hoje eh muito mais rico do que o mundo da grande depressao, em diferentes paises existem social safety nets que nao existiam aaquela epoca.
Em termos de perda de utilidade, a crise atual deve ter sido ateh agora bem mais suave que o aperto monetario do Volcker por exemplo.
Alias, estah aih um tema de paper bem interessante.
Guilherme,
Muito obrigado por sua resposta.
Porém, continuo insatisfeito com a questão.
Seu esforço em resgatar o que denomino de "formulação original [...]largamente ignorada [...]", é notório, mas este esforço, por si só, não grande a veracidade da argumentação.
Casos similares ao de Fischer [1933](largamente ignorado)podem ser encontrados na mesma década, por exemplo, Joseph Alois Schumpeter com o "Business cycles" [1939] ou bem antes com a "Teoria do Desenvolvimento Econômico" [1911], obras estas hoje seculares, porém, amplamente ignorado pelo mainstream na sua da de lançamento, e ainda, hoje.
Que igualmente foram resgatadas e "ampliadas" (Este ponto se diferencia da releitura de Ben Bernanke), pelos não menos brilhantes, Richard Nelson & Sidney Winter (1984), e bem antes por Natan Rosenberg [1963]. Mas tudo este esforço, não difundiu de maneira ampla o paradigma schumpeteriano.
Retomando nossa discussão inicial, em nenhum momento disse que não haviam sido tomas meditas que visassem dirimir os efeitos deletérios da crise (essa frase é chavão de economistas) para as famílias. Simplesmente frisei que em termos relativos muito de vez pelas instituições financeiras, empresas privadas do que pelas famílias (congelamento de taxas, redução de impostos e aumento na burocracia para evitar despejos desnecessário que aumentaria a oferta de casa, que exerceria, por sua vez, maiores pressões sobre os preços dos imóveis).
Os argumentos de Monica Baumgarten (Galanto consultória) e André Lara Resende (IEPE/CG)são forte, porém, o de Mônica deriva da idéia consensual que os bancos americanos não colocaram em seus balanços as perdas totais dos títulos tóxicos.
Mas simplesmente a marcação na curva deste títulos, apesar forte, este argumento perde sentido agora que foi aprovado a revogação da lei que obrigava as instituições financeira a marcarem este títulos a valor de mercado.
Acerca de dois meses as instituições financeiras marcam estes títulos através de um média espúria feita por eles, portanto, se as instituições financeira estão tão endividadas quanto antes nunca saberemos.
Os argumentos do Lara Resende nos artigos Em Plena Crise & Soluções para crise (este não tenho certeza do título), são quase que inegáveis, porém demandarão mudanças estruturais no comportamento médio do consumidor americano e no modelo macroeconômico vigente (Déficit E.U.A & Superavits Chineses), logo, o tempo é um variável fundamental nesta questão.
Para finalizar, o que você chama de "desafios mais complexos" per passa por questões psicológicas muito mais fortes e de difícil comprovação empírica, por isso, estou insatisfeito com a questão.
Vou ler este referencial que me sugeriu, mas de antemão já friso, um referencial é pouco para difundir um novo consenso.
Abraços,
Thiago Rocha.
Anônimo,
realmente é difícil fazer essas comparações em termos de bem-estar... o fato que a rede de proteção social é hoje muito maior é certamente relevante, com reflexos também sobre as tensões sociais: Hobsbawn (Era dos Extremos) nota que foi bastante surpreendente para os historiadores a moderação social verificada nos períodos de estagnação ou crise a partir dos 60, em virtude da maior capacidade do Estado de prover condições mínimas para aqueles mais prejudicados pela contração da atividade.
Thiago,
não sei se entendi o que você quer dizer com "novo consenso". Se estiver se referindo a consenso em torno do fato de que as famílias norte-americanas na verdade pouparam nos anos 20, uma única referência é suficiente: "Historical Statistics of the United States: Colonial Times to 1970", pt. 1-2 (House Document Series, No 93-78), Census Bureau (US).
Abs
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