quarta-feira, 24 de junho de 2009

Sobre o Fed e Wi-Max

Finalmente veio à tona na semana passada o plano Obama-Geithner de redesenho da regulação financeira nos EUA. Deixando de lado a questão da definição das Financial Holding Companies (FHC), que será realmente o determinante central da extensão dos poderes da nova arquitetura da regulação, quero discutir nesse artigo em que medida caminhar no sentido de harmonização ou maior coordenação regulatória pode permitir evitar a repetição de episódios como o atual.

Minha analogia é com o setor de Telecomunicações. Contrariamente aos EUA, Inglaterra e Austrália, por exemplo, o Brasil possui uma regulação bastante obsoleta em que cada atividade de uma firma do setor é regulamentada por um arcabouço institucional distintinto. Nesse sentido, a regulação é por tecnologia, e não por conteúdo: existe uma Lei do Cabo, para transmissão de conteúdo por TV a cabo, uma lei para telefonia, outra para internet. A questão é que as empresas do setor passaram a atuar em vários mercados ao mesmo tempo, e a regulação separada para cada mercado limitou a eficiência das operações multi-mercados, uma vez que, por exemplo, a Lei do Cabo obriga que empresas que fornecem o serviço de televisão por assinatura tenham mais de metade do capital social pertencente a brasileiros natos. As grandes companhias de telefonia que operam no Brasil são, em maioria, de capital estrangeiro, o que barrou o desenvolvimento do IPTV no Brasil. A harmonização da regulação é defendida de forma veemente pelas companhias do setor como forma de aumentar a eficiência de sua operação.

De forma similar, no passado recente os bancos passaram a fazer muito mais que emprestar dinheiro, e o sistema evoluiu para o que ficou conhecido como shadow banking, incluindo uma vasta gama de produtos, em especial vinculados ao mercado de seguros. A diferença com relação ao setor de Telecomunicações é que a inovação no setor financeiro é vista como tão benéfica que introduzir ineficiências que podem desestimulá-la relega ao segundo plano as interferências do regulador diante de operações que não estão claramente amparadas pelo arcabouço regulatório em curso. É isso que permite arbitragem regulatória.

O resumo da ópera: harmonização / maior coordenação na regulação do sistema financeiro parece a princípio mais instrumental para aumentar a eficiência do sistema (ou ao menos preservar os ganhos das inovações financeiras recentes) do que para ampliar a capacidade do regulador de prevenir a repetição de episódios como este. A maior capacidade de controle depende mais de uma nova disposição para dizer não, que certamente não esteve presente até aqui.

10 comentários:

Arthur disse...

Lichand, uma pergunta de leigo. Existem evidências conclusivas que as inovações do setor financeiro são tão importantes assim para o desempenho econômico em geral?

Faço essa pergunta porque uma vez vi o Dani Rodrik desafiando alguém a apresentar evidência que existe relação entre inovações no setor financeiro e desempenho econômico (creio que o desafio dele se relacionava mais com a relação entre inovações financeiras e crescimento do que sobre uma eventual relação com outra variável macro, como volatilidade, mas enfim... tenho curiosidade sobre as duas coisas!).

Conheço um pouco a literatura acerca da importância do acesso a crédito e seguros para o desenvolvimento (via mecanismos como escolhas ocupacionais, crescimento das firmas e inovação). Também conheço um pouco da evidência que existe uma relação forte entre aprofundamento financeiro e desenvolvimento.

Mas simplesmente não tenho a menor idéia se inovações financeiras tem algum impacto significativo sobre tal tipo de acesso a serviços financeiros ou sobre algum tipo de variável como crédito/PIB (que apresenta grande correlação com desenvolvimento pelos estudos do Levine, pro exemplo).

Teoricamente parece-me claro que sim. Mas dado o desafio do Rodrik (depois tento achar o link no blog dele) fiquei sem saber. Fora que existem alguns autores (Gerchenkon, 1962, Stiglitz e Weiss, 1993 e alguns artigos do Singh de Cambridge) que defendem (ou defendiam) que a melhor formatação do sistema financeiro seria uma fortemente regulada e baseada em bancos e não uma desregulada e baseada em mercado de capitais como a anglo-saxônica.

Abs

M disse...

O pessoal do desenvolvimento sabe mais do que eu, mas acho que é bem documentada a correlação entre desenvolvimento financeiro e riqueza. Aliás, é só pensar nos países com mercado financeiro mais desenvolvido que você vai ver que isso é óbvio.

Mas daí pra achar causalidade...

Guilherme Lichand disse...

Arthur,

sobre a evidência acadêmica nesse sentido, vou deixar para meus colegas de blog comentarem. Sobre evidência factual, há exemplos à vontade: o próprio episódio atual mostrou que as inovações financeiras permitiram que uma proporção inédita de americanos tivesse casa própria, e mais do que isso, como comentei no último artigo sobre o tema, permitiram a expansão do consumo (e pois, do produto americano) mesmo num cenário em que salário não acompanhou o crescimento da produtividade.

Sobre regulação do sistema financeiro, acho que a interpretação que você deu a alguns dos artigos citados não é muito usual: Gershenkron fala sobre o papel dos bancos públicos num contexto em que o setor privado não está suficientemente organizado para prover crédito que possam financiar projetos de retorno líquido positivo; Stiglitz e Weiss fala sobre restrição de crédito como resposta ótima dos bancos, em função do efeito adverso que taxas mais altas têm sobre composição.

Abs

Arthur disse...

Guilherme, valeu pela resposta. Quanto a evidência factual concordo com você. Queria mesmo é saber se existe alguma evidência acadêmica.

Errei quanto a referência do Stiglitz. O artigo que mencionei era esse: “Financial Markets and Development,” Oxford Review of Economic Policy, 5(4), 1989, pp. 55-68.

Quanto ao Gershenkron concordo com você que o foco dele é sobre o papel dos bancos públicos em países subdesenvolvidos ou de industrialização tardia. O artigo do Stiglitz também tem como foco países subdesenvolvidos.

Entretanto, supondo serem corretos os argumentos desses artigos, talvez não exista uma relação tão inequívoca entre inovações financeiras e desempenho econômico (ou talvez ela seja uma relação mais fraca que nós pensamos) a ponto de em alguns contextos ser justificável a imposição de regulações fortes que certamente diminuem o ritmo das inovações financeiras e mesmo desestimulam o desenvolvimento de um mercado de capitais.

Rafael, conheço essa correlação que você mencionou. Também não sei se é causal ou não. Mas mesmo que seja, a minha dúvida é se existe evidência que as inovações financeiras tem efeito sobre o desenvolvimento financeiro (que geralmente é medido através da relação crédito/PIB ou algo parecido).

Abs

Guilherme Lichand disse...

Para tentar orientar um pouco o debate, acho que temos uma questão chave na mesa: em que medida o novo arcabouço institucional contribui no sentido de evitar a repetição do episódio atual?

Alguém aí pode se arriscar?

Anônimo disse...

Tem gente que acha que essas medidas apenas preparam o terreno para o próximo desastre, como o Simon Johnson (cujo blog é muito bom, o baseline scenario).

http://baselinescenario.com/

Abs

Anônimo disse...

o historico das reaçoes das autoridades antes e durante a crise deixa claro que não foi falta de supervisão ou regulação. pelas atitudes o provavel é que, apesar das declarações posteriores em contrário, tanto FED como o tesouro tinham conhecimento da extensão dos problemas, mas preferiram medidas superficiais, talvez para não alarmar os agentes e tentar evitar catapultar os mercados para o colapso. enfim, os erros, assim como na gestão Greenspan, foram no processo decisório, dos dirigentes, não do arcabouço regulatório.

Bernard Herskovic disse...

Eu não lembro de nenhum artigo que relaciona especificamente inovação financeira com desempenho econômico, porém lembrei de um artigo [LEVINE, Ross. Financial Development and economic growth: views and agenda. Journal of Economic Literature, v.XXXV (june 1997), PP.688-726]que faz um resumo da literatura sobre desenvolvimento financeiro e crescimento e também mostra algumas evidências empíricas. Como inovação financeira pode ser vista como um elemento que facilita o desenvolvimento financeiro, talvez o artigo ajude. Contudo, não sei se o artigo ajuda muito, porque eu li já tem um bom tempo e não me lembro dos detalhes.

Lindóia disse...

"Tem gente que acha que essas medidas apenas preparam o terreno para o próximo desastre".

É suficiente que um próximo desastre aconteça para que o pessoal tire esse tipo de conclusão. Tudo que fazemos pode ser entendido como "preparar o terreno" para tudo que vier no futuro.

Guilherme Lichand disse...

A proposta do novo modelo regulatório dá poderes para que o Fed, em princípio, interferir em qualquer instituição que seja considerada detentora de ativos financeiros. No episódio atual, não podia interferir em holdings (o caso do Citigroup foi emblemático), não podia interferir no mercado de seguros, e não tinha uma regulação clara sobre firmas com atuação internacional (a nova proposta não pré-define qual será o critério sobre isso, mas estabelece que estas poderão estar sob o guarda-chuva do Fed).

Na minha opinião, mais útil do que isso serão(i) requerimentos de capital pró-cíclicos e diferenciados por tamanho de cada instituição, (ii) maior carga de capital para as operações de trading vis a vis de banking, e (iii) incentivos desenhados para estimular a negociação dos produtos financeiros sofisticados, como derivativos, nos mercados secundários.

(i) sinaliza no sentido de moderar a exposição ao risco ao longo do ciclo econômico, (ii) desincentiva a persistência de instituições 'too big to fail' e (iii) permitem que o mercado forneça informação a cada instante acerca de ativos sintéticos complexos.