terça-feira, 4 de agosto de 2009

A pergunta da rainha

A Rainha Elizabeth II perguntou como foi que os economistas permitiram que a crise mundial acontecesse. Uma comissão de 'outstanding economists' da LSE respondeu que a inação derivou de "uma falha da imaginação coletiva de muitas pessoas brilhantes" (matéria completa aqui).

A resposta deixa a desejar e chega a suscitar a questão de para que servem os economistas, à qual o Financial Times ofereceu algumas respostas. Tratarei aqui de duas questões ligeiramente diferentes que, acredito, permitem respostas muito mais interessantes: qual o papel dos consumidores de teoria econômica? E qual o papel dos produtores de teoria econômica?

Produtores
Os produtores de teoria econômica são os pesquisadores acadêmicos vinculados às principais instituições mundiais de pesquisa em Economia. Inseridos em determinado programa de pesquisa, há duas estratégias de sobrevivência (em termos de Pierre Bourdier): (i) de continuidade do programa de pesquisa, derivando resultados periféricos que basicamente constituem desdobramentos das hipóteses e métodos que constituem o núcleo duro do programa, e (ii) de ruptura do programa de pesquisa, que consiste na introdução de novas hipóteses ou métodos que desafiam os anteriores.

Evidentemente, a segunda estratégia é limitada por uma série de fatores:
- a profissão é auto-referenciada, isto é, para publicar é necessário ter artigo aprovado por pares que partilham do programa de pesquisa atual;
- ligado ao primeiro ponto, a publicação em economia é norteada por um princípio de consistência interna, de maneira que a linguagem e método utilizados devem corresponder à prática aceita pela profissão;
- o destino dos recursos necessárias para realização de pesquisa (incluindo salários) é também determinado por pares que partilham do programa de pesquisa corrente.

Fica claro que, ainda que rupturas eventualmente tomem corpo, o trabalho cotidiano do produtor de ciência econômica se concentra em desenvolver perifericamente o programa de pesquisa, se possível para responder questões econômicas relevantes (que dizem algo a respeito do mundo).

Não é seu papel - no sentido que não constitui projeto viável dentro do programa de pesquisa - desenvolver uma teoria completa sobre o mundo, ou combinar diferentes abordagens de maneira a aproximar uma suposta verdade. Uma análise cuidadosa da História da evolução dos programas de pesquisa em Economia mostra que seu desenvolvimento foi sempre pontuado por questões políticas e ligadas à possibilidade de funding - como mostrou a excelente exposição de Philip Mirowski no 1º Simpósio Internacional sobre História do Pensamento Econômico, organizado pela USP -, sofre influências externas a seu programa de pesquisa - como a co-evolução do Equilíbrio Geral de Arrow-Debreu e do modelo IS-LM de Hicks, segundo Wade Hands, no mesmo simpósio - e nem sempre caminha linearmente, muito menos no sentido de progresso - conforme pensava Lucas, na visão criticada por Kevin Hoover, também nesse seminário, acerca da microfundamentação da Macro.

Mesmo os inicidos em filosofia da Ciência muitas vezes se esquecem que, na prática os pesquisadores em economia estão sujeitos aos mesmos princípios que orientam a evolução de qualquer outra Ciência.

Consumidores
De outro lado, os consumidores de teoria econômica, sobretudo os formuladores de política, têm por papel selecionar as teorias adequadas, bem como os elementos relevantes da teoria, para dar suporte à atividade de solução de problemas que responde a alguma demanda real.

Em outras palavras, uma vez que se entenda que o programa de pesquisa mainstream não possui monopólio da verdade ou da validade das teorias, pelo que se disse acima - teorias não são selecionadas porque se aproximam mais da verdade que outras, mas porque respondem de forma mais aceitável a uma determinada questão segundo critério da comunidade científica que subscreve àquele programa de pesquisa; mais do que isso, persistem no tempo em função de path-dependency, até que possivelmente não mais configurem a resposta mais adequada às questões agora tidas como relevantes - a responsabilidade pelo mau uso da teoria remete aos consumidores, e não aos produtores de teoria econômica.

Não há qualquer fundamento na asserção de que as idéia de Minsky ou Kindleberger tenham perdido validade, ou se aproximam menos da verdade, ou dizem menos sobre o mundo, simplesmente porque não foram incorporadas ao programa mainstream.

Se os modelos DSGE mais avançados não dão conta de externalidades macroeconômicas e da possibilidade de falências, instabilidade e crises (Robert Gordon, também no excelente simpósio da USP), isso não é motivo para que os policy-makers tenham ignorado os efeitos deletérios da 'Grande Moderação' sobre a gestão de risco das instituições financeiras. Os policy-makers que em 1987 rejeitaram a substituição do Glass-Steagal Act enumeraram uma a uma as consequências que estariam ligadas a essa reforma e que se materializaram na crise de 2008.


Conclusões
Uma resposta mais adequada à pergunta da rainha é que houve uma enorme falha dos consumidores de teoria em fazer uma leitura adequada da realidade a partir do universo teórico disponível (cujo paradigma, aliás, não sofreu alterações substantivas desde 1987).

Alternativamente, a resposta dos 'outstanding economists' aponta o dedo para os produtores , como que esperando deles a concepção de uma teoria que reflita somente 'verdade' . No máximo, 'wishful thinking' - para concluir como gostam os ingleses.

20 comentários:

Anônimo disse...

Guilherme, você leu o livro "why aren't economists better than garbagemen?", do David Colander? Ele tratou de forma brilhante do mesmo assunto do seu post. Vale a pena dar uma olhada.

Lucas Reis disse...

Resumindo: o erro foi dos políticos que confiaram nos economistas, é isso?

Guilherme Lichand disse...

Eu não colocaria dessa forma. A maioria esmagadora dos economistas não é produtor de teoria.
A falha foi dos economistas que trabalham como consumidores de teoria, sobretudo na posição de formuladores de política, que julgaram mais relevantes teorias que desprezavam o essencial no que diz respeito a externalidades macroeconômicas, ciclos financeiras e risco endógeno.

Anônimo disse...

Muito boa a analise, Guilherme. Mas eu acho que a coisa foi um pouco mais simples: ninguem queria por breque no samba. Nem o povo, nem o governo, nem os politicos, nem os reguladores, e muito menos os investidores. Eu vinha alertando os amigos da debacle desde o primeiro trimestre de 2006, pois em funcao de decisoes pessoais de investimento em imoveis, acompanhei a evolucao da bolha passo a passo. Colegas no trabalho quase me bateram. Deu no que deu.

Um grande abraco


Kleber S.

PS: Resta agora para os economistas cairem na realidade e admitir que o modelo da globalizacao MORREU. Nao deu certo porque os 'imbalances' NAO sao automaticamente corrigidos. Desgracadamente os imbecis que ficam torrando dinheiro em 'estimulos' economicoso fazem no sentido exato de retornar ao passado que nao deu certo.

Anônimo disse...

Post bacana!

Gostaria de propor que aos economistas daqui, heterodoxos e ortodoxos que fossem suscintos em suas explicações, pois sem as divagações que lhe são inerentes, seríamos melhores.

Ps.: Sugiro a cada um colocar abaixo, em duas linhas no máximo, sua explicação para a crise. O que acham? Acho um ótimo exercício de inteligência.

Marcos-DF

Guilherme Lichand disse...

Pois é Kleber, por isso que o Obama diz que as reformas não podem deixar passar a "oportunidade da crise": quando a coisa vai bem ninguém quer pensar em política anti-cíclica.
O que você acha do novo desenho presente na proposta Obama-Geithner?

Marcos, uma resposta sucinta (sob o risco de não comunicar nada) é que a crise foi produto de (i) financiamento barato, (ii) diversificação ineficiente, (iii) regulação inapropriada, (iv) classificação de risco incipiente, (v) desintermediação enganosa. Pode acrescentar a isso os grandes desequilíbrios globais, que aliás contribuíram muito para (i).

Anônimo disse...

Gulherme

Nao e' bem "oprtunidade da crise", a que o Obama se refere. E' a oportunidade politica, pois seu partido detem a Casa Branca, ampla maioria na camara e maioria 'a prova de obstrucao no senado.
Caso eles percam uma dessas maiorias na mid-term elections, o Bobama vira Clinton, que nao conseguiu mais nada em seus ultimos 6 anos de governo.

O que eu acho do plano do messias e seu sub? Nao sabem o que estao fazendo, o plano e' pura gastanca, sem efeito multiplicador. Alem disso, tudo e' feito para sustentar o paradigma anterior. Ele mudou, mas esses caras nao se aperceberam.

Abracao


Kleber S.

Guilherme Lichand disse...

eu me referia à proposta de novo desenho para a regulação. Em comentário de outro post ("Sobre Fed e Wi-Max") eu disse o seguinte:

"A proposta do novo modelo regulatório dá poderes para que o Fed possa, em princípio, interferir em qualquer instituição que seja considerada detentora de ativos financeiros. No episódio atual, não podia interferir em holdings (o caso do Citigroup foi emblemático), não podia interferir no mercado de seguros, e não tinha uma regulação clara sobre firmas com atuação internacional (a nova proposta não pré-define qual será o critério sobre isso, mas estabelece que estas poderão estar sob o guarda-chuva do Fed).

Na minha opinião, mais útil do que isso serão (i) requerimentos de capital pró-cíclicos e diferenciados por tamanho de cada instituição, (ii) maior carga de capital para as operações de trading vis a vis de banking, e (iii) incentivos desenhados para estimular a negociação dos produtos financeiros sofisticados, como derivativos, nos mercados secundários.

(i) sinaliza no sentido de moderar a exposição ao risco ao longo do ciclo econômico, (ii) desincentiva a persistência de instituições 'too big to fail' e (iii) permitem que o mercado forneça informação a cada instante acerca de ativos sintéticos complexos."

Me parecem avanços bastante positivos, mas não sei afirmar até que ponto realmente sai do papel...

Anônimo disse...

Guilherme, pode passar o link da matéria do FT?

valeu!

Guilherme Lichand disse...

Lá vai: http://blogs.ft.com/arena/2009/07/28/economists-what-is-the-point/

Tiago Caruso disse...

Lichand,

temo que você esteja desenvolvendo múltiplas personalidades econômicas.

"Marcos, uma resposta sucinta (sob o risco de não comunicar nada) é que a crise foi produto de (i) financiamento barato, (ii) diversificação ineficiente, (iii) regulação inapropriada, (iv) classificação de risco incipiente, (v) desintermediação enganosa."

É na minha opinião, uma excelente explicação para a crise. Já a descrita no post...

abs

Guilherme Lichand disse...

você acha que a culpa foi do meio acadêmico? isso se chama supervalorizar a sua escolha profissional ahah

se você achou a explicação excelente, note que em nenhum momento ela menciona "negligência dos acadêmicos". A pesquisa influencia políticas públicas apenas na medida em que os policy-makers acham que ela é útil. Há um estoque de cerca 75 anos de pesquisa em Macroeconomia... não está claro que o que foi produzido lá atrás seja menos válido ou útil que aquilo que está sendo produzido no momento.

Anônimo disse...

não está claro que o que foi produzido lá atrás seja menos válido ou útil que aquilo que está sendo produzido no momento.

Não? Essa sua frase não implica que o saber em macroeconomia de hoje é tão bom quanto o do passado?

Alguém acha que agregados monetários são um bom indicador do desempenho da política monetária?

Alguém acha que taxas de juros nominais de curto prazo dizem se a política monetária é contracionista ou não?

Aumento de produtividade reduz o nível de emprego de uma economia?

Rigidez nominal não tem nenhum papel nas explicações dos ciclos?

Alguém acha que a teoria de distribuição de renda Kaleckiana tem qualquer relevência?

Guilherme Lichand disse...

só para ilustrar, um dos fundamentos relevantes da crise, os grandes desequilíbrios globais, podem ser enquadrados num framework kaleckiano. Além disso, parece que não há nada tão bom quanto Minsky ou Kindlberger para caracterizer instabilidade e ciclos financeiros.

Acredito sim que haja evolução dentro de um programa de pesquisa no sentido de que a teoria acumulada é capaz de responder a mais perguntas. Mas o critério de seleção de teorias é bem mais complexo que "descartar aquelas menos próximas da verdade". Por exemplo, a curva de Philips não podia ser rejeitada num contexto em que não se observava estagflação. Outras - como os o que escreveram Kalecki ou Minsky - não foram incorporadas ao mainstream porque não se comunicam: usam linguagens diferentes.

Kalecki era um economista polonês, que escreveu distante do que estava acontecendo na academia britânica ou americana. Só para dar um exemplo, ele escreveu sem noção alguma do que já se tinha disponível em termos de técnicas econométricas.

Tiago Caruso disse...

"você acha que a culpa foi do meio acadêmico? isso se chama supervalorizar a sua escolha profissional ahah"

Não eu não acho que a culpa foi do meio acadêmico. Achei essa resposta (a do post) para a crise ruim. Achei a outra resposta ( a do comentário) muito boa. Nela não havia nada sobre a academia.

Como já dizia o mestre Marcelo de Paiva Abreu: Wall street não é Harvard Square

Anônimo disse...

Guilherme

A nova regulacao nas maos de um cara como o Greenzinho, velho safado e boko-moko, nao iria impedir a formacao e o estouro da bolha.

O que o governo deveria fazer e' criar instituicoes que dificultem ao maximo o aparecimento de situacoes como esta. Por exemplo, contrato de derivativo que nao for feito em clearing house seria tao ilegal quanto bookmaking, com pena de prisao.

Regras de mercado futuro para commodities finitas tabem ajudaria uma barbaridade.

Guilherme, todo mundo sabia que o negocio imobilirio iria resultar em perdas catastroficas. So' que todo mundo achava que ELE seria esperto o suficiente pra tirar o seu da reta na hora H.

Falhou.

Um grande abraco


Kleber S.

Anônimo disse...

Menos... menos... menos...

Nao vamos jogar o babe com a agua da bacia.

Sim, ninguem nega que existam riscos inerentes a desregulamentacao financeira.

Mas com os riscos existem tambem recompensas.

Sera que a economia mundial teria crescido como cresceu nas ultimas decadas sem a globalizacao?

Bem duvidoso.

E vamos tambem lembrar que a bolha gera ativos reais. Basta dirigir em qualquer suburbio americano e vera que a bolha gerou algo de valor.

Fred disse...

"Só para dar um exemplo, ele escreveu sem noção alguma do que já se tinha disponível em termos de técnicas econométricas."

Não entendi o que vc quis dizer, pois Kalecki utilizava sim técnicas econométricas.

Fred

Guilherme Lichand disse...

basta ler "Teoria da Dinâmica Econômica" para notar que as aplicações empíricas bastante básicas que ele reporta são extremamente defasadas em relação ao que já se tinha à época. Acho que o prefácio à edição em português que traz Kalecki e Joan Robinson no mesmo volume (da coleção Os Economistas) traz essa curiosidade.

tonyvolpon disse...

olha isso aqui
http://blogs.nyu.edu/fas/dri/aidwatch/2009/08/the_idiots_guide_to_answering.html