quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Economia da guerra e paz

Como promover a paz é um tópico que os economistas têm mostrado certa resistência a estudar. Se de um lado há inúmeros estudos que buscam quantificar os efeitos adversos de conflitos sobre crescimento, de outro, cada conflito parece tão particular e sua resolução uma questão tão complexa e pouco tratável que sugere que o tema é estranho ao ferramental que os economistas dominam.

Ainda que eu concorde com a complexidade e especificidade de cada solução, e que uma parte extremamente significativa das dimensões envolvidas não façam parte do currículo de Economia, acredito que os economistas podem dar contribuições mais significativas para esse campo. Em particular, me parece que esse é o grande fator por detrás do subdesenvolvimento da África subsaariana e resolvê-lo ou ao menos atenuá-lo deveria ser prioridade de pesquisa para aqueles preocupados com desenvolvimento econômico.

Dito isto, começo com uma abordagem tão simples quanto possível do problema. De modo geral, há conflitos de três naturezas: em função de intolerância étnica, em função de disputa econômica por territórios, e em função de disputa religiosa por territórios.

Se o conflito é puramente étnico então a solução é simples: a redefinição de fronteiras - separação de um Estado em outros dois, por exemplo, acomodando cada etnia em uma nação independente. A dificuldade é que usualmente o território não é homogêneo e a divisão é não trivial, envolvendo a segunda dimensão - econômica - de disputa por territórios mais produtivos ou que contêm recursos naturais. Por fim, conflitos pelo controle de áreas religiosas - por exemplo, Jerusalém - são tão mais complexos que não me parece haver um caminho claro a seguir, de modo que vou me concentar na segunda dimensão.

Agora imagine um pai que deixa como herança um único apartamento, e que tem dois filhos que tem de decidir sobre a utilização do imóvel. Eles podem (i) envolver-se em uma disputa física/judicial para decidir quem toma controle do imóvel, (ii) revezar-se no controle do imóvel de modo pacífico, cuidando para que o outro possa beneficiar-se do seu uso enquanto o outro está na posição de gerência, (iii) alugá-lo e dividir as rendas do aluguel ou (iv) vendê-lo e dividir o dinheiro da venda.

Um país que acomoda variás facções em conflito econômico por um território são como esses dois irmãos obrigados a viver nesse único imóvel. A solução (i) é a única possível a menos do equivalente de (ii), que seria um regime representativo. Para irmãos que tem diferenças mais profundas que simplesmente a natureza do uso do imóvel, contudo, (ii) pode ser impraticável.

De outro lado, a diferença entre (iii) e (iv) é que esta última oferece uma solução definitiva para o conflito, enquanto a primeira envolve uma relação de longo-prazo sujeito sempre a um problema de commitment - quem gerencia as rendas do aluguel? a escolha dos locatários? etc. Como não é possível "vender" um país em conflito, no entando, nos resta pensar em soluções como (iii) mas com desenho capaz de superar o problema de compromisso.

Minha primeira sugestão é como segue e se baseia no teorema de Coase: caso seja possível fazer pagamentos laterais, a forma da redefinição de direitos de propriedade é irrelevante. Nesse sentido, a ideia é redefinir fronteiras, criando um Estado para cada povo/etnia, criando um mecanismo de compensação para aquela que se situar no território desprovido das riquezas contidas no outro.

O compromisso é certamente impraticável caso a solução seja deixada a par das próprias partes (até mesmo porque não foi implementada até aqui) - os custos de transação de sua implementação são elevadíssimos e o teorema certamente não se aplica. A questão então é redefinir as fronteiras artificiais derivadas do neocolonialismo dos séculos XIX e XX e fiar o mecanismo redistributivo a uma organização internacional capaz de fazer valer, por exemplo, um imposto sobre a extração de recursos naturais que é earmarked para o Estado vizinho.

Tudo isso é ainda muito preliminar, mas acho que é necessário começar a pensar nessas questões...

14 comentários:

Anônimo disse...

Guilherme Lichand, teorico neo-imperialista!!

Guilherme Lichand disse...

Não entendi. Mas aproveito para expor nos comentários um ponto em aberto do texto que não tratei porque o post já estava muito extenso: a viabilidade da proposta depende que seja compatível a incentivos para os líderes políticos (ou para as elites, como trata a emergente literatura de Political Economics) implementá-la ao invés de prosseguir com o conflito.

Dado que o movimento em direção à paz é de soma positiva, isto é, a variação do fluxo futuro de renda econômica gerada é positivo dada a nossa constatação inicial de que conflito atrapalha desenvolvimento, sabemos que sob um regime representativo a sociedade escolheria o fim do conflito.

O problema é que os líderes / a elite podem achar mais proveitoso não avançar no sentido de um sistema de partilha de rendas caso o equilíbrio de forças seja muito desigual, a seu favor.

Não é claro que esse seja um problema simples de resolver, mas uma ação internacional no sentido de ameaçar a hegemonia de ditadores genocidas conjuntamente à proposição do mecanismo que expus no post pode ser a combinação adequada para reduzir as rendas esperadas de continuidade do conflito e tornar a proposta implementável.

Anônimo disse...

"Não entendi."

A sua proposta eh quase que 100% igual a proposta dos chamados neo-imperialistas.

Como voce nao conhece o termo, voce eh um neo-imperialista dos mais autenticos, porque chegou as mesmas conclusoes que eles sozinho.

Guilherme Lichand disse...

OK, vamos continuar sem fazer nada,
afinal o problema não é nosso.

Anônimo disse...

Guilherme,

Texto muito interessante, parabéns. Apenas uma ressalva: acho que o 4º parágrafo ficou paradoxal.Primeiro você afirma que um conflito étnico tem uma solução simples; imediatamente após, no mesmo parágrafo, diz que a discussão não é trivial e ressalta uma dificuldade importante (geográfica-econômica). Fiquei sem saber a sua real opinião.

Abs

D.Morgenstern

Anônimo disse...

"OK, vamos continuar sem fazer nada, afinal o problema não é nosso."

O que eu disse nao tem juizo de valor. Mas que voce eh um neo-imperialista, voce eh! Um pouquinho mais de self-awareness e voce vai admitir que George W. Bush estava certo :)

Guilherme Lichand disse...

"Um pouquinho mais de self-awareness e voce vai admitir que George W. Bush estava certo"

Jamais! Estou falando em dar suporte internacional à resolução de um problema que por consenso limita a evolução das condições de vida na região e que só não pode ser resolvido entre as partes por uma questão de falta de commitment.

D. Morgenstern, tks pelo comentário. Minha observação era de que se o conflito fosse puramente étnico, seria simples de resolver: redefinição de fronteiras, um estado para cada grupo. A dificuldade é que quase sempre (sem querer ser materialista histórico demais) o que está por detrás dessas diferenças (ou junto delas) são interesses econômicos por territórios - aí a discussão do post é relevante.

Michel disse...

Lichand,

O que eu teria a acrescentar é que em muitas questões de conflito, é importante olhar também para restrições políticas por trás dos conflitos étnicos (além das restrições econômicas que você citou que normalmente estão por trás dos conflitos étnicos). Para me explicar melhor, no caso de Israel, por exemplo, negociar a volta dos refugiados palestinos para o território que continuaria de Israel, do ponto de vista de um político israelense, significa correr sérios riscos de (i) sofrer uma moção de desconfiança do knesset, (ii) perder eleições e (iii) mudar todo o arcabouço institucional do Estado de Israel. Da mesma forma, atualmente, um político palestino aceitar um acordo de paz sem a volta dos refugiados palestinos ao território que continuaria de Israel seria um ato enfentado como sinal de moleza, reprovação de uma parcela razoável dos palestinos e as chances de um radical palestino tentar tomar o poder de facto a força.

Anônimo disse...

Guilherme,

Grato pelo esclarecimento.

Obs: quando li o título do seu post, achei que fosse sobre algo relacionado ao "The Economic Consequences of the Peace" ou ao keynesianismo bélico....já que é praticamente compulsório citar Keynes nas grandes questões macro.

Tb acho assuntos relevantes, quem sabe um texto futuro no espectro.

Abs,

D.Morgenstern

Pedro disse...

Caro Guilherme

não entendo muito do assunto, mas sei que 'conflict economics' é uma área que tem lá seus autores (apesar de ainda não ter alcançado as melhores publicações). Li há pouco tempo o artigo abaixo, que tenta explicar sob que condições temos guerra civil, democracia... não é lá o modelo mais interessante do mundo, mas é de um cara que entende bastante de África, então de repente vai te interessar.

"A theory of political regimes in Africa", Jean-Paul Azam, Journal of African Economics (2005).

abs

Pedro disse...

Corrigindo: o título completo é "The paradox of power reconsidered: a theory of political regimes in Africa".

Guilherme Lichand disse...

Tks pela sugestão! Vou olhar e comento

Michel disse...

Lichand, na linha aí de passar referências...relacionados ao teu tema, de que interesses econômicos normalmente estão por traz dos conflitos étnicos:

Um survey sobre guerras civis novo, que saiu no Journal of Economic Literature, é esse: "Civil War", Edward Miguel e Christopher Blattman. Esse survey fala muito do impacto de variáveis econômicas sobre conflito. Os dois autores têm trabalhos bastante interessantes sobre guerras civis em publicações mainstream. Nessa linha de impacto de variáveis econômicas sobre conflito, tem um job market paper novo, da Oiendrilla Dube e um outro cara, sobre commodities shocks e conflito na colômbia bastante interessante (pois coloca a questão como distributiva, e não como nível de renda per capita).

Abs

Guilherme Lichand disse...

Valeu Michel! Vou preparar outros posts para dar sequência ao tema