segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Remuneração no setor financeiro

Coluna de Steven Kaplan no Valor de 25/01 analisa a hipótese de que a estrutura de remuneração nas instituições financeiras tenha sido determinante do comportamento de risco que culminou na crise de 2008.

Para tanto, destrincha os resultados de artigo recente de Fahlenbrach e Stulz, que utilizando dados de cerca de 100 instituições financeiras, entre 2006 e 2008, testa a referida hipótese a partir de três desdobramentos: (1) se parcela expressiva dos vencimentos de altos executivos não era contingente aos resultados de longo-prazo das firmas; (2) se esses executivos possuíam volume insuficiente de ações e opções de compra de ações da própria firma; e (3) se as instituições cujos executivos eram caracterizados por mais remuneração de curto-prazo e menos ações do banco tiveram pior performance na crise.

O objetivo desse post não é analisar as técnicas utilizadas pelos autores, tampouco os resultados encontrados, mas apenas afirmar: testar (3) não é informativo para avaliar a hipótese de que a estrutura de remuneração no setor financeiro tenha sido determinante para a crise.

Isso pode soar um pouco chocante, dado que (1) e (2) podem ser respondidas de modo meramente descritivo (o que de fato é feito pelos autores, que argumentam no sentido de que apenas a menor parte da remuneração dos CEOs consistia de pagamento em dinheiro, enquanto o montante em opções e ações da firma era em média 24 vezes maior). É justamente (3) que exige um exercício econométrico, tão sofistificado quanto necessário para tentar separar possíveis tendências diferentes de firmas que possuíam diferentes estruturas de remuneração do efeito causal dessa estrutura de incentivos sobre desempenho.

Não importa quão sofisticadas - e quão caras aos colegas economistas - sejam as técnicas econométricas dos autores, elas são simplesmente inúteis para testar a hipótese de interesse. E isso se deve a um fato muito simples: a ausência de contrafactual adequado, na presença de complementariedade estratégica.

Complementariedade estratégica - diferente de externalidade, quando a ação de um agente afeta a utilidade dos demais - ocorre quando as ações de um indivíduo afetam o ranking de escolhas dos demais. Diante disso, ainda que, isoladamente, minha estrutura de remuneração não induza um comportamento diferente daquilo que seria maximizador para o banco, uma vez que todos os demais bancos estejam posicionados para obter retornos excepcionais de curto-prazo, posso adotar comportamento similar por uma série de razões: (i) porque a minha remuneração, ao menos em parte, depende do diferencial do desempenho da instituição financeira em relação à média do setor - um expediente contratual comum na presença de relação agente-principal como é a de shareholders-CEO -; (ii) porque eu tenho carreer concerns, e a perda de reputação relativa em relação aos demais CEOs pode ser bastante custosa; (iii) por pressão dos próprios acionistas ou da Diretoria, que observam desempenho superior - ainda que de curto-prazo - das demais instituições financeiras em condições bastante similares.

Em termos econométricos, isso significa que o resultado de cada firma depende explicitamente da estrutura de remuneração dela mesma e de todas as demais. Trata-se na verdade de um sistema de equações simultâneas; o coeficiente estimado pelos autores será inconsistente, e é pouco claro que o viés tenha direção bem-definida, que seja informativo de alguma maneira.

Para estimar consistentemente o efeito da própria estrutura de remuneração no desempenho - analogamente a um sistema de eqs. de preços e quantidades -, seria necessário um instrumento que produzisse variação exógena na estrutura de pagamentos dos demais. Mas estamos nos perdendo! Não é essa a hipótese de interesse! Estamos interessados em saber se a estrutura de remuneração foi determinante da crise, e essa pergunta é diferente daquela que um sistema de eqs. com variáveis instrumentais é capaz de responder - afinal, gostaríamos de investigar resultados sistêmicos.

Para que fosse possível testar essa hipótese, o contrafactual adequado, nessa situação, seria a ausência de uma estrutura de remuneração que (supostamente) induz incentivos perversos para todas as firmas no setor. Esse exercício, infelizmente, não é factível, a menos de uma mudança institucional como a que pode surgir no Governo Obama. Se a medida seria efetivamente positiva, é difícil dizer. Mas, para os avaliadores de impacto de plantão, teríamos aí um bom experimento.

18 comentários:

Michel disse...

Cara, acho que antes de ter certeza disso, existe um passo teórico: conferir que esse jogo que você delineou tem equilíbrios múltiplos. Se não tiver, essas equações estimadas podem ser interpretadas uma forma reduzida do teu sistema de equações (incorporando a função melhor resposta dos outros bancos ao banco em questão), a direção do viés acho que é conhecida nesse caso e o problema se torna um pouco mais leve (mas continua pesado): a equação estimada tem auto-correlação nos erros, que pode deixar inferência meio ferrada.

Agora, se tiver equilíbrios múltiplos, a análise realmente perde todo o sentido. Uma sugestão para a estimação de jogos simultâneos com equilíbrios múltiplos é Sweeting (2009, no RAND Journal of Economics, a aplicação eu num sei se é muito boa...mas a idéia acho que é "a ser considerada"); ou então Bajari, Han Hong, Krainer e Nekipelov (tá forthcoming no Journal of Business and Economics Statistics...é resumão de uma metodologia para estimar jogos estáticos de info completa, incluindo jogos com equilíbrios múltiplos tipo do Sweeting...). A solução geral é achar uma variável que "indique" qual equilíbrio está sendo jogado. Pode num ser uma solução muito boa do ponto de vista teórico, mas pode ter algum apelo em alguns casos...

Tiago Caruso disse...

Se existir de fato um problema de equilíbrios múltiplos, isso fará com que a variável explicativa (formas de pagamento dos executivos) tenha uma variância pequena. Certo?

Se for isso é um problema para estimação, mas gera viés de atenuação e é facilmente comprovado nos dados.

Guilherme Lichand disse...

Caruso,

não é bem isso. O ponto é que o comportamento dos executivos pode não responder de forma próxima à própria estrutura de pagamentos.

Michel, interessantes contribuições; de modo sucinto, no entanto, inferência - que é no que estamos interessados - não segue com ou sem múltiplos equilíbrios. Pior do que isso, acredito que o framework para testar efeitos sistêmicos não seja compatível com o tipo de variação que os autores exploram, como argumentei.

Abs

Tiago Caruso disse...

Lichand,

"O ponto é que o comportamento dos executivos pode não responder de forma próxima à própria estrutura de pagamentos."

Se eu entendi corretamente, o problema é que existe um benchmark de comportamento que os executivos seguem que faz com que a estrutura de remuneração não seja uma boa medida de comportamento. Certo?

Se for só isso temos um problema de erro de medida e continuamos com viés de atenuação.

Anônimo disse...

Belo post!

"Estamos interessados em saber se a estrutura de remuneração foi determinante da crise"

Outra questão (talvez mais) interessante é saber se, mesmo se o esquema de remuneração for determinante da crise, porque deveríamos tentar mudá-lo?

1) Um esquema de remuneração imposto pelo governo pode ser ainda pior.

2)Não acredito que a ocorrência de crises financeiras periódicas seja necessariamente um mal. Volatilidade financeira não implica necessariamente volatilidade real. Os últimos 30 anos de liberalização financeira podem ter nos trazido a um mundo muito mais volátil "financeiramente" mas a economia real(PIB ou consumo, p.e.) tem sido muito claramente menos volátil, mesmo levando a crise do subprime em conta...

Guilherme Lichand disse...

"(...) a estrutura de remuneração não seja uma boa medida de comportamento"

Po, ainda não é isso cara. Dá uma lida mais uma vez. Abs

Michel disse...

Caruso, não entendi o problema que você citou em equilíbrios múltiplos, pra ser honesto. O que eu quis dizer é que se, por algum motivo, os jogadores estão jogando um equilíbrio q no início e outro q' no final, e se a gente supor que todo mundo joga só um desses equilíbrios o tempo todo; é bem provável que os parâmetros que estimaremos não tenham nada a ver com os parâmetros "reais". Achei que fosse esse o problema que o Lichand citou por causa da complementariedade estratégica que ele explicou no post...

Mas Lichand, pelo que eu entendi, o teu problema, na verdade, é que pode existir risco sistêmico né? Então, tudo que eu quis dizer (no caso de não haver eq. múltiplos) é que a tua crítica é testável (como correlação nos resíduos de um banco e de outro), e que só tem problema se essa correlação for forte o suficiente.

Guilherme Lichand disse...

Vai ver eu escrevo mal, vai ver vocês leram com pressa, vai ver as duas coisas.

Tudo o que eu quis dizer está lá... Michel, achei super interessante sua colocação sobre a econometria pra modelos de eqs. múltiplos, mas me diga sinceramente: seja lá como forem os resíduos, você acha que é possível testar a hipótese de interesse nesse caso?

Michel disse...

O que eu entendi (já vou pedir desculpas pelo comentário longo, porque vou botar as fórmulas do que eu entendi)...me diz se estou analfabeto demais...vamos supor um modelo com 2 bancos A e B (para simplificar as minhas contas), e temos um conjunto de equações de melhor resposta do tipo:

(1) risco_At = b1*risco_Bt + b2*remun_At + b3*agreg_t+ u_At

(2) risco_Bt = b4*risco_At + b5*remun_Bt + b6*agreg_t+u_Bt

onde agreg_t são termos como PIB; média dos retornos dos outros bancos (o que prejudica viés, mas não consistência); ou mais genericamente, dummies de mês ou ano. Complementariedade estratégica ocorre <=> b1>0 e b3>0. Substitui (1) em (2) (e (2) em (1)). Obtemos o sistema em forma reduzida:

(1') risco_At = (1/(1-b1*b4))*[b2*remun_At + (b3+b1*b6)*agreg_t + b1*b5*remun_Bt + b1*u_Bt + u_At]

e algo análogo para o banco B. Vamos agora fazer as seguintes suposições:

(H1) b1=b4; b2=b5; b3=b6 (simetria)
(H2) remun_jt = b7*agreg_t+e_jt, com E[e_jt*e_it]=0 para todo banco i,j.

A segunda hipótese diz que a remuneração tem um componente que depende da economia agregada (PIB, retornos médios, o que for), e de um componente específico do banco (mais especificamente, não correlacionado com os componentes específicos da remuneração dos outros bancos). Nesse caso, podemos estimar (1') como:

risco_At = (1/(1-b1^2))*[b2*remun_At + b3*(1+b1)*agreg_t + b1*u_Bt + u_At]

=> risco_At = d1*remun_At + d2*agreg_t + v_At

e d1 será estimado consistentemente com um pooled OLS desde que |b1|<1 (caso contrário, podemos ter regressões espúrias). Isso porque eu supus que, dado agreg_t, remun_At é não correlacionado com remun_Bt. Mais ainda, sabemos a direção do viés (de magnificação, pois 0<b1^2<1). Por fim, podemos testar se |b1| é grande olhando para a correlação nos resíduos entre bancos (mais especificamente, para Corr(v_jt,v_it), que pode ser estimado).

O principal ponto é se você consegue incluir um agreg_t amplo o suficiente. Não necessariamente conseguimos incluir tudo que gostaríamos...mas podemos ter pistas com relação a tua tese incluindo na regressão do cara termos agregados de agora e defasados (falando genericamente, dummies de mês) e depois testando para auto-correlação nos resíduos. Ele tem variação para fazer isso porque ele tem um painel.

Foi isso que você quis dizer? Ou eu estou cometendo um erro craso?

Michel disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Michel disse...

Só pra notar, a minha equação de estimação de fato OMITE remun_Bt...de propósito.

Guilherme Lichand disse...

ahahaha calma

Primeiro, do lado esquerdo da equação dos caras tem uma medida de desempenho. Eles querem saber se bancos cujo estrutura de remuneração induzia mais tomada de risco se saíram pior na crise. A partir disso, querem avaliar se de fato a estrutura de remuneração 'perversa' de fato induz comportamento compatível apenas com ganhos de curto-prazo. Notam
que as instituições que possuíam o maior peso da remuneração em ações e opções (em tese, aquelas que impunham maior alinhamento com incentivos do banco) foram as que sofreram as maiores perdas na crise.

Segundo, a hipótese de interesse é: pagamentos que induzem tomada de risco foram determinantes da crise. Você propôs um framework para testar se determinada estrutura de pagamentos induz tomada de risco. Algo, aliás, que os autores assumem como bem-definido: quanto maior a proporção da remuneração não-contingente ao valor futuro da empresa, maior o incentivo à tomada de risco - no sentido de explorar oportunidades de curto-prazo às custas de perdas de longo-prazo.

Tiago Caruso disse...

"Vai ver eu escrevo mal, vai ver vocês leram com pressa, vai ver as duas coisas."

Calma, o interlocutor aqui é limitado.

Pelo que entendi a regressão só é válida no equilíbrio local. Não tem como fazer inferência sobre estados da natureza sobre os quais não temos nenhuma informação.

Acertei dessa vez?

Michel disse...

Caruso, não vou te responder porque, aparentemente, eu também estou meio perdido...

Lichand, pelo que eu entendi: o teu problema então é que

desempenhoA = f(riscoA,riscoB) + e3*agreg_t + ht

é isso? Se for isso, se a gente pegar a equação lá do modelo que eu te descrevi no comentário anterior e substituir...a hipótese 2 (remuneração dos bancos A e B, condicional em agreg_t, é não correlacionada) nos permite comprar a regressão de desempenhoA em remunA (desde que controlemos para agreg_t e que os resíduos entre bancos seja suficientemente não correlacionados). Não é isso? Num sei...eu to com a impressão que tu ta fazendo uma crítica muito profunda e que eu não estou nem perto de pegar a tua crítica...

Guilherme Lichand disse...

"Era uma vez uma corrida bancária seguida de quebradeira generalizada dos bancos nacionais de Terra Média. O economista da região, Gandhalf, diz que tem uma solução para evitar que isso se repita novamente: diminuir a % de álcool na cerveja preferida dos hobbits.

Ele diz que fez um estudo econométrico que comprova a sua teoria de que o excesso de álcool nessa bebida foi determinante da corrida bancária de Terra Média, descrito pela seguinte metodologia: Gandhalf regridiu a posição de cada hobbit na fila para sacar suas economias (suponha por simplicidade que seja uma única fila para sacar no único caixa 24h de Terra Média) na proporção que cerveja representava no volume geral ingerido pelo hobbit nos meses anteriores à corrida bancária. Constatou que os hobbits que tinham maior proporção de cerveja eram também os que estavam nas primeiras posições da fila, argumentando que isso comprova que a % de álcool na cerveja causou a corrida bancária."

Por que ele não pode dizer isso?
1) É evidente que a posição de um indivíuo na fila depende das decisões de todos os demais, e que sua própria decisão de ir para a fila depende de sua expectativa sobre as decisões de todos os demais vis a vis o montante que o banco mantinha como reserva;
2) O que é que ele consegue testar, econometricamente? Se um indivíduo igual em todos os atributos a um outro mas que bebeu marginalmente mais estava mais a frente na fila. Isto é, no máximo o estudo mostraria que álcool gera marginalmente mais apetite por liquidez (unintended pun), mas isso não responde a uma questão muito maior de determinação da corrida bancária, sobretudo quando havia uma série de outros fatores não controlados acontecendo ao mesmo tempo (naquele fim de semana, os bancos de Terra Média tinham que pagar uma dívida enorme com Smeagol).

Michel disse...

"Por que ele não pode dizer isso? [...]"

Cara, o que você quer dizer é que crise é uma variável de mercado, e a variação que ele tem nos dados dele é entre firmas (ele não tem variação temporal o suficiente para pegar vários períodos de crise/não crise)? Se for isso, a tua crítica não depende de complementariedade estratégica nem de expectativas. O problema é que você tá tentando explicar uma constante na tua amostra (a chegada da crise). Tem simplesmente a ver com a falta de existência de um contra-factual (eu posso inventar um jogo aqui para explicar relações entre remuneração e crise com substitutabilidade estratégica na tomada de risco das firmas e, ainda assim, ter a mesma crítica ao estudo).

Por outro lado, se você aceitar a hipótese de que bancos que tiveram mais perdas durante a crise tiveram mais a ver com o aparecimento dela (hipótese que eu acho difícil de engolir, mas tudo bem), aí o estudo do cara presta né...

Guilherme Lichand disse...

Beleza! Eu disse que por conta da complementariedade estratégica ele não estima o que diz que estima, e mesmo que estimasse, isso não seria útil para testar a hipótese de interesse. Abs

Guilherme Lichand disse...

mas foram necessários 1 post e 16 comentários para 1 pessoa entender o que eu escrevi ahaha acho que vou me aposentar do cargo