quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Uma contribuição para o debate sobre Doença holandesa

Em primeiro lugar, quero dizer que tenho acompanhado as críticas aos proponentes da hipótese de doença holandesa para o Brasil no Mão Visível e acredito que, até agora, aqueles que a defendem têm encontrado dificuldade em mostrar que ocorreu de fato desindustrialização.

Meu ponto é que essa discussão é, para dizer o mínimo, incompleta. Vejamos porque. Suponha uma economia na qual a indústria aumenta sistematicamente, num dado período, sua participação no produto. Suponha, contudo, que a despeito disso o dinamismo dessa indústria, medido pela tecnologia utilizada na sua produção, ou pela produtividade dos fatores empregados nesse setor, se mantém estagnado ou declina. Suponha ainda que o dinamismo desse setor em outras economias, em especial nos principais mercados com quem realiza trocas comerciais, assim como em seus principais concorrentes, aumentou sistematicamente no período.

Nesse cenário, a economia terminaria mais industrializada do que no início do período, mas com um setor bem menos dinâmico em termos relativos; por definição, mais distante da fronteira tecnológica e portanto em situação estruturalmente pior no que diz respeito a crescimento econômico, já que aqueles que defendem a hipótese de doença holandesa o definem como "aquisição de tecnologia" ou "structural upgrading".

Agora podemos parar com as hipóteses: a situação descrita acima conta a história da produtividade das manufaturas no Brasil desde 1980. Vejamos os gráficos abaixo:


Esse gráfico foi construído a partir de dados da GGDC para valor agregado na manufatura e emprego no setor. Mostra que após crescimento acelerado da produtividade da manufatura entre 1950 e 1980, temos uma um declínio e estagnação em termos absolutos a partir de então.

O próximo gráfico, usando a mesma base de dados, compara a produtividade da manufatura no Brasil e nos EUA para o mesmo período:


Esse gráfico impressiona não somente porque o gap de produtividade EUA-Brasil na manufatura, que manteve-se basicamente estável até os 1980, aumenta continuamente a partir de então, mas principalmente porque os EUA certamente não é a economia mais dinâmica nessa dimensão.

O gráfico abaixo, de natureza um pouco diferente (define como 100 o valor da produtividade na manufatura para o ano inicial para o qual havia dados, 1963), inclui a Coréia do Sul:


Note que mesmo considerando que o Brasil parte de uma base mais baixa (o que justifica que o gráfico vermelho esteja acima do azul no período inicial), o incremento da produtividade na manufatura é tão baixo a partir do período final que é superado pelos EUA. A intensidade do incremento na produtividade da manufatura na Coréia do Sul supera de longe qualquer das duas outras economias.

Conclusão: mais importante do que se a indústria aumentou ou diminuiu sua participação no PIB ao longo das últimas décadas, o fato é que esta perdeu dinamismo e o gap de produtividade em relação a outras economias desenvolvidas, ou em desenvolvimento consideradas casos de sucesso, aumentou sistematicamente a partir de 1980. Isto sim deveria preocupar os economistas que discordam de um modelo de crescimento baseado nas vantagens comparativas ricardianas.

20 comentários:

Michel disse...

Cara...duas perguntas:

(i) Como é medida a produtividade aí? É com que função de produção, que dados?

(ii) O debate sobre doença holandesa, até onde eu sei, é sobre valorização/apreciação cambial levando a desindustrialização, não? Se for, a gente espera, pelo menos com base na teoria básica (não sei se na teoria mais sofisticada), que qualquer impacto do câmbio sobre crescimento de exportações / importações seja um impacto de curto prazo (no longo prazo, preços dos comercializáveis se ajustaria de forma a trazer o câmbio real de volta). Dado um impacto somente de curto prazo sobre exportações/ importações, a gente esperaria que qualquer impacto de câmbio sobre industrialização não viesse via produtividade, mas sim via realocação de fatores (tipo, trabalho), mudança nas remunerações de fatores, e coisas do tipo, que são naturalmente eliminadas da análise quando você trata só de produtividade, não?

Quando você me mostra gráficos de produtividade assim, eu fico na dúvida se isso é gerado porque o Brasil é relativamente fechado ao comércio, ou porque houve uma abertura, ou outros vários motivos.

Mas sei lá...não sou o especialista no tema...

Guilherme Lichand disse...

Construí produtividade como valor adicionado dividido por emprego no setor, seguindo Palma, por exemplo.

Sobre (ii), honestamente não entendi. Não estou dizendo nada sobre doença holandesa, estou tentando ir além dessa discussão para chamar atenção para o fato de que o gap de produtividade da nossa manufatura vem aumentando sistematicamente desde 1980.

Se você está interessado nas causas desse fenômeno, mesmo economistas como o próprio Palma dizem que só câmbio valorizado é muito pouco para explicar desempenho tão ruim.

Sobre abertura, acho que isso não conta nenhuma história, até porque o timing não é consistente com isso.

"O" Anonimo disse...

Guilherme,

A produtividade que você está calculando é Y/L que em uma Cobb-Douglas é A * (K/L)^a ou seja, é a combinação da produtividade total dos fatores (TFP) e um termo que mede o capital deepening da economia.

A literatura brasileira sobre TFP mostra o crescimento da produtividade total dos fatores na manufatura se estagnando no final dos anos 70 (II PND?), tornando-se fortemente negativo durante os anos 80 (política industrial da Nova República?), crescendo rapidamente no começo dos anos 90 (liberalização comercial?) e perdendo o ritmo na segunda metade da década de 90 (dissipação do efeito one-off da liberalização inicial ou recrudescimento do protecionismo durante o segundo mandato de FHC?).

Eu não sei o que a literatura mostra para anos recentes, quem sabe uma alma bondosa possa desenterrar algum estudo.

M disse...

Eu não sei se faz sentido o cenário que você monta no começo do post. Se a indústria aumenta participação no PIB e ao mesmo tempo se torna menos produtiva, eu tenho que ter um batalhão de gente entrando no setor, certo?

Mas então, das duas uma, ou a produção absoluta no setor de serviçoes tem que cair ou a produtividade tem que aumentar muito.

Não é?

Tiago Caruso disse...

Para mim qualquer debate sobre desindustrialização falha em responder a pergunta fundamental: -e daí?

Anônimo disse...

O gráfico mostra que a indústria só se tornou menos produtiva na década de 80. No resto do período a produtividade cresceu ou ficou estagnada.

Se a indústria aumenta a participação no PIB, necessariamente os serviços e/ou agropecuária terão de perder. E quem perdeu não foram os serviços.

Mas a pergunta "e daí?" é mesmo fundamental.

Acho que a resposta será dado quando alguém encontrar um país com mais de 30 ou 40 milhões de habitantes que seja desenvolvido e que não tenha (ou tenha tido) um setor industrial extremamente forte (para saber quais são os threshholds basta ler o Palma).

O "tenha tido" é porque existe um processo natural de desindustrialização que acontece em países de desenvolvimento avançado, que não deve ser confundido com desindustrialização precoce (tipo Argentina).

Se a resposta ao "e daí" for diferente do que está acima, então qual seria o cenário aconselhável?

M disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

"O" Anônimo,

já ouviu falar em década perdida? Em crise da dívida externa latino-americana? E vem cantar de galo...Faça-me o favor: política industrial da nova república? Vai ler bula de Biotônico Fontoura.

M disse...

Atenção, eu disse que o setor de servições tem que diminuir em termos absolutos.

Tudo bem, se a produtividade da iindústria fica estagnada (ao invés de cair) então ou o setor de serviços tem que ficar estagnado (EM TERMOS ABSOLUTOS) ou a produtividade tem que aumentar (não necessariamente muito). Não acho que nenhuma das duas alternativas seja verdadeira para o Brasil.

Segundo ponto, faz a mesma conta de produtividade que você fez aí pro setor de serviçõs. Vai dar a mesma coisa, porque no fundo o que tá gerando esse resultado é a renda percapita do país. E aí qual é a explicação?

Guilherme Lichand disse...

a produtividade do setor de commodities aumenta muito no período

"O" Anonimo disse...

“já ouviu falar em década perdida? Em crise da dívida externa latino-americana? E vem cantar de galo... Faça-me o favor: política industrial da nova república? Vai ler bula de Biotônico Fontoura.”

Não entendi. Você realmente acha que plausível que a lei de reserva de mercado de informática não tenha sido absolutamente desastrosa? Não sei quantos pontos percentuais de TFP foram perdidos apenas nessa medida, mas a queda no TFP industrial foi brutal durante esse período. Existe uma razão que o Brasil perdeu a onda da tecnologia de informação e foi a política industrial dos anos 80.

Quanto à história da década, eu me lembro vividamente (além de ter os dados na tela à minha frente). Em 1984, nós estávamos fora da crise da dívida e com os termos de troca se movendo decisivamente a nosso favor. O populismo da Nova República jogou-nos de volta à crise com uma vingança. Tudo de ruim que aconteceu depois disso foi responsabilidade dos policymakers do governo Sarney. Se tiver alguma dúvida, vide Chile ou Malásia, países que tomaram pancadas similares ou piores que o Brasil tomou no começo da década de 80 e acabaram a década em uma trajetória muito mais favorável.

Anônimo disse...

"Quanto à história da década, eu me lembro vividamente (além de ter os dados na tela à minha frente). Em 1984, nós estávamos fora da crise da dívida e com os termos de troca se movendo decisivamente a nosso favor. O populismo da Nova República jogou-nos de volta à crise com uma vingança. Tudo de ruim que aconteceu depois disso foi responsabilidade dos policymakers do governo Sarney."

Pior do que isso é saber que os policymakers da época estão com tudo e não estão prosas!

(só pra usar uma expressão idosa e engraçada)

Rogerio Ferreira disse...

Guilherme,

você nos seus dois posts foi além da argumentação da quermesse.

Primeiro você advoga a necessidade do protecionismo com base no histórico de outros países, ou seja, defende a "política industrial".

E agora você demonstra que mesmo quando ocorre industrialização, podemos ter, no fim das contas, "desindustrialização".

Enquanto a quermesse defende como "política industrial" a desvalorização cambial, ou seja, penalizar a todos para beneficiar alguns setores, você parece defender medias mais efetivas para proteger a indústria.

E aí está a questão central. No meu entendimento, o ponto nevralgico não é demonstrar ou não a ocorrência da desindustrialização. Como alguém já disse, e daí se ocorre a desindustrialização? Pode ser apenas uma especialização da economia, etc, etc.

Para mim, a quermesse tentar encontrar uma desculpa para meter a mão no câmbio e atender o lobbye de alguns.

E o Brasil não possui um bom histórico de politica industrial. E isto assusta, porque aqueles que querem, hoje, estar à frente da política industrial e cambial, consegue a façanha de serem piores que aqueles estiveram à frente no passado (quando não são os mesmos).

Só quem não viveu os anos 80 no Brasil para querer aquilo de volta (ou pelo menos não ocupava nenhum cargo por aí).

"O" Anonimo disse...

“E o Brasil não possui um bom histórico de politica industrial. E isto assusta, porque aqueles que querem, hoje, estar à frente da política industrial e cambial, consegue a façanha de serem piores que aqueles estiveram à frente no passado (quando não são os mesmos).”

Eu andei lendo os artigos do Ha-Joon Chang sobre política industrial coreana e outros artigos e resenhas sobre aquele país. É uma literatura bem interessante, e apesar das diferenças entre o Ha-Joon e outros autores (o Ha-Joon põe muito mais ênfase na proteção e menos nas metas de exportação que outros autores), há um consenso que a estratégia sul-coreana só foi possível devido ao caráter autoritário do regime, das particularidades políticas do país naquele momento, e durante a vida de um único ditador extremamente carismático e efetivo.

M disse...

commodities é setor primário ou commodities mesmo?

E cresceu durante todo o período? Acho que não, especialmente década de 90.

Guilherme Lichand disse...

commodities é agricultura + mineração

Depois de uma queda entre 1978 e 1983, a produtividade do setor cresce vertiginosamente (em termos absolutos, assim como o diferencial em relação aos EUA) até 2001. Depois tem leve queda e retomada já em 2004 - meus dados param em 2005.

Vou por esses gráficos em algum lugar, mas o acesso aos dados é bem fácil no GGDC (http://www.ggdc.net/)

Anônimo disse...

Se commodities inclui mineração, então tem o efeito da quebra do monopólio da Petrobrás que aconteceu em meados dos anos 1990, mas que foi antecipado por reestruturação naquela empresa desde o governo Collor. O aumento de TFP no setor de petróleo foi um verdadeiro milagre. Não veio barato (foi preciso usar até as Forças Armadas para dispersar grevistas), mas aparentemente pode ter transformado o país.

M disse...

Cara, entrei lá pra fazer os gráficos de serviços, é bizarro. Setor financeiro do Brasil atrapalha o resultado.

Alex disse...

Guilherme:

Esta medida de produtividade agregada tem vários problemas.

Um deles é o levantado pelo "O". Se a função de produção for Cobb-Douglas, por exemplo, o que você chama de produtividade é um mistura de produtividade total dos fatores" e do maior capital por trabalhador. Em particular, se "capital" incluir também "capital humano", então reflte não só o baixo investimento em capital físico, como o baixo investimento em educação.

Mas há também um problema de composição, que não é muito sério num período de poucos anos, mas fica relevante num horozonte mais longo.

Suponha, por exemplo, que haja dois setores na economia (para simplificar vou deixar de lado toda discussão anterior e pensar apenas em termos de trabalho): um que requeira relativamente poucos trabalhadores por unidade de produto e outro que requeira mais.

L1 = aY1

e

L2 = bY2 (b>a)

Se, por um motivo qualquer, o peso do setor 2 crescer no produto total, a medida agregada de produtividade sugerirá queda, mesmo se a produtividade em cada setor (o inverso de "a" e de "b") ficar constante (o que, por construção, no caso do exemplo acima, é verdade).

Imagine então se o peso da indústria automobilística cresce relativamente ao da siderúrgica. Como a segunda é mais intensiva em capital (acabei de fazer um salto lógica com relação ao meu exemplo - espero que não se incomodem), a expansão da primeira pareceria uma queda da produtividade total.

Ficam, portanto, duas lições: (1) use TFP (não produto/trabalhador); (2) faça os estudos da forma mais desagregada que puder para controlar o efeito da composição industrial.

No mais, é por aí mesmo. Fuce os dados, mexa com eles, apresente os resultados, ouça as críticas, responda as que você acha erradas e incorpore as que você acha corretas, Depois disso volte ao início e vá iterando até sair com um artigo interessante. Nunca deixe de ouvir os dados.

Abs

Alex

Guilherme Lichand disse...

Obrigado pelo comentário, Alex.

Em primeiro lugar, concordo que o ideal seria usar a TFP. Só encontrei um estudo que faz essas contas para o setor de manufatura (Muendler, 2002, link: http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=525924),com dados de 1986 a 1998. O gráfico na página 14, que mostra 3 estimativas para a TFP de 27 setores de manufatura no período para o Brasil é surpreendentemente parecido com o primeiro gráfico que eu veiculei no post, que calcula produtividade como valor agregado / emprego no setor, o que é reassuring.

Em segundo lugar, o ponto de mudança de composição poderia ser de fato relevante. Infelizmente não disponho no momento de dados mais desagregados para VA; no Banco SIDRA do IBGE tenho somente para produção, o que já é algo. Outro problema é que tenho somente de 1991 para a frente, mas também já é um início. Fazendo o gráfico para indústria geral, extrativa e de transformação, a grande mudança de 1991 a 2009 é um ganho de participação relativa da indústria extrativa, que passa de aprox. 23% para aprox. 34% do produto total da indústria. Caso esta seja de fato menos capital intensiva que as demais, parte da perda de produtividade pode se dever a isso.

Outra conta que os dados do IBGE permite fazer é desagregando o setor de indústria de transformação. Fazendo isso, o principal que se nota é (1) perda de participação no produto de Material eletrônico, aparelhos e equipamentos de comunicações (3.23) e (2) ganho de participação de Máquinas para escritório e equipamentos de informática (3.21) e de Outros equipamentos de transporte (3.26). Nesse caso, acho que é pouco claro se há um gradiente claro de intensidade de capital associado a essas mudanças de composição.

Em terceiro lugar, e ainda que o correto fosse verificar os mesmos pontos para os EUA, queria destacar que o aumento do gap é tão dramático que não acredito que essas considerações (ainda que relevantes) possam responder nem mesmo pela maior parte dele.

Por último, meu ponto principal no post é levantar a questão de que ainda que a participação da indústria no PIB não tenha diminuído no tempo, a variação da produtividade da mesma é que deveria ser a preocupação central daqueles que definem crescimento como aquisição de tecnologia. Mais do que isso, mesmo economistas heterodoxos como Gabriel Palma reconhecem que só valorização cambial é muito pouco para explicar tamanho aumento do gap de produtividade em relação a EUA e Coréia do Sul.